Quando comparado com as abominações humanas perpetradas a nações inteiras, a raças, credos e gêneros, o vinho europeu pouco sofreu durante a segunda guerra mundial. Mas as invasões, o domínio estrangeiro e os abusos associados, o trabalho escravo, os roubos, os atropelos e as pilhagens dispersas fizeram parte das muitas asperezas a que os produtores de vinho europeus tiveram de se submeter durante os longos seis anos de conflito.
Se Portugal e Espanha sofreram os males de forma menos imediata, danos colaterais que seguramente afligiram mas que foram vividos sem o acosso direto da invasão ou o convívio direto com a barbárie, o mesmo não se pode dizer dos restantes países produtores tradicionais. Itália, França, Alemanha e Áustria, os dois últimos numa fase muito mais tardia e de forma bem diferenciada, sofreram de forma direta e objectiva as consequências da guerra, tal como de resto o sentiram países mártires como a Grécia, Roménia, Bulgária ou a antiga Jugoslávia.
Alemanha e Áustria sofreram pilhagens devastadoras nas suas adegas nos estertores da guerra pelas mãos dos aliados, sobretudo soldados russos que destruíram a quase totalidade das múltiplas compilações de colheitas antigas que a maioria dos produtores dos dois países conservava religiosamente. Os países balcânicos, tal como a Grécia e a Itália, sofreram direta e intimamente a destruição de vinhas, adegas, caves e equipamento que chegaram em associação com a invasão, suportando um aniquilamento quase total durante várias vindimas.
A França viveu este período de guerra de forma igualmente aflitiva mas seguramente menos dolorosa que os restantes países produtores ocupados. O regime colaborador de Vichy que se ocupou do sul de França acabou por atenuar os efeitos diretos da presença alemã permitindo uma complacência que o resto da Europa ocupada não conseguiu lograr. Entre as denominações francesas mais relevantes, Bordéus foi aquela que sustentou menos aflições e desventuras.
Claro que a vida não terá sido fácil para a maioria de produtores e negociantes. Muitos terão certamente suportado dificuldades enormes e provações inimagináveis. Mas contaram ao mesmo tempo com a relativa indulgência das autoridades de Vichy e com a complacência condicional das autoridades alemãs, que não estavam interessadas em derrubar o ciclo produtivo de um dos vinhos mais famosos do mundo. Não só em sinal de respeito para com o nome Bordéus mas também por interesse próprio, para manter aberto o abastecimento de vinho bordalês aos oficiais e à cúpula política alemã.
Tal como nas restantes denominações francesas, a maioria dos châteaux, dos mais glorificados aos mais discretos, foram ocupados e as caves confiscadas e pilhadas. Muitas das adegas e caves foram convertidas em pontos de defesa privilegiados ou armazéns de armamento e munições face às condições naturais que dispunham. Muitas vinhas, algumas delas particularmente interessantes, foram arrancadas e reconvertidas em aeródromos, acampamentos, campos de treino ou posições de artilharia. A vida dos produtores, viticultores e negociantes não foi certamente fácil.
Mas os vinhos de Bordéus eram tidos em tamanha consideração que a administração alemã decidiu nomear um representante direto de Berlim para se ocupar exclusivamente do vinho e suas particularidades na região, uma espécie de weinführer cuja única missão residia na supervisão da produção e posterior requisição e aquisição directa de todo o vinho produzido. A disciplina imposta era rígida mas, tendo em conta as circunstâncias especiais da guerra e da ocupação, aparentemente relativamente justa e tendencialmente equitativa.
São raros os produtores que não se queixaram de ver as suas caves depredadas, de assistir ao saque de coleções privadas, de terem sido vítimas do espólio das colheitas antigas que seguiam diretamente para as coleções privadas de alguns privilegiados em Berlim. Mas são ainda mais raros os produtores que perderam tudo, que assistiram ao extravio total dos lotes de vinhos antigos. O roubo foi sistemático mas não exaustivo, permitindo que a maioria dos châteaux conseguissem manter um histórico decisivo para a compreensão do passado.
Mas um produtor em espacial, Mouton Rothschild, um dos nomes mais sonantes do universo do vinho, foi poupado aos devaneios e usurpações dos ocupantes alemães. O ultrafamoso e frequentemente endeusado Mouton-Rothschild conseguiu manter-se arredado dos arrestos cíclicos do exército alemão graças aos bons ofícios e ao respeito de Heinz Bomers, o comissário de Berlim responsável pela execução da política vínica do Terceiro Reich em Bordéus, e graças à ocupação da propriedade pelo governo de Vichy, conjuntura que colocava a propriedade automaticamente arredada da jurisdição de Berlim.
Homem ligado ao vinho, Heinz Bomers tinha sido, por coincidência... ou talvez não, importador do châteaux Mouton Rothschild na cidade de Bremen, na Alemanha. Pouco dado à política e pouco admirador das convicções nazis, Heinz Bomers conhecia bem o negócio e conseguiu manter o produtor afastado de confiscações e relativamente imune às gigantescas dificuldades da época. A relação foi tão proveitosa e tão cortês que o próprio Barão Philippe Rotschild não duvidou em nomear Heinz Bomers para seu importador e representante imediatamente após o termo da segunda guerra mundial, posição que ocupou até ao momento de reforma por idade.
Por Rui Falcão
Fonte: Fugasvinhos