Dois copos de vinho e uma dor de cabeça momentos depois. A receita não é igual para todos e afeta uma pequena percentagem da população. Ainda assim, vale a pena perguntar: porque é que algumas pessoas ficam com dor de cabeça após beberem vinho? E não, não falamos da ressaca do dia seguinte, que habitualmente acontece depois de copos a mais, mas do mal-estar que alguns experienciam depois de consumir o néctar.
Se à princípio a questão parece simples, o mesmo se poderia julgar da resposta. Mas não. Encontrar o culpado não foi tarefa fácil. Foi (e continua a ser) uma verdadeira dor de cabeça. Depois de sucessivas entrevistas, apontam-se três culpados possíveis: sulfitos, histaminas e tiraminas (no ranking também estão os taninos, apesar de não termos encontrado explicações suficientes junto dos entrevistados).
Numa tentativa de desconstruir o trio de palavrões, Nuno Borges, professor na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto, começa por explicar que os sulfitos existem em pequenas quantidades e de forma natural no vinho. Resultam da fermentação do mosto e, por norma, são de novo acrescentados aquando do engarrafamento — servem para estabilizar o vinho, prevenir a sua oxidação e evitar o crescimento de bactérias menos interessantes.
Dito isto, há quem seja mais sensível aos sulfitos, pelo que estes poderão ser responsáveis pelas tais dores de cabeça, bem como por uma dificuldade em respirar, espirros e/ou garganta inchada. Apesar dos sintomas serem semelhantes aos de uma alergia, os sulfitos apenas provocam hipersensibilidade que, preto no branco, difere da alergia porque não mete o sistema imunitário ao barulho, diz Célia Costa, da Unidade Funcional de Alergias Alimentares do Hospital de Santa Maria. Os sulfitos correspondem a intolerâncias alimentares, isto é, dizem respeito a “reações não adversas, não alérgicas”.
Mas a percentagem da população afetada por este “sal do ácido sulfuroso” é relativamente pequena. “Existe um limiar individual para cada paciente e, como há esse limiar, julgo que possam existir subdiagnósticos. Talvez um paciente se queixe de alergia a mútiplos alimentos, quando em causa possa estar a adição de sulfitos”, adianta Célia Costa. No entanto, “dentro das hipersensibilidades esta é uma percentagem pequena”. Mas desengane-se quem pense que os sulfitos apenas estão presentes nos vinhos. As suas propriedades conservantes estendem-se a um leque variado de alimentos, onde se incluem conservas, enlatados, alguns tipos de queijo e até carne picada vendida a granel, frutos secos e produtos hortícolas de cor branca.
Sendo os sulfitos um dos aditivos alimentares mais habituais no vinho — considerando as características já indicadas – os tintos, brancos e afins que os incluam nas suas composições são obrigados por lei, desde novembro de 2005, a ter a seguinte informação no rótulo: “contém sulfitos” (é uma espécie de “pode conter amendoíns”). Quem o diz é Nuno Lima Dias, responsável pelos guias de vinhos anuais lançados pela Deco que, para além das provas cegas, têm também em conta análises feitas em laboratório.
O engenheiro alimentar explica que os vinhos que contenham uma quantidade de sulfitos superior a 10 mg/litro já precisam de ter a respetiva indicação no rótulo. “A lei permite 150 mg/litro para os tintos e 200 mg/litros para os brancos”, afirma Nuno Lima Dias, fazendo uma ressalva: “Abaixo de 100 mg/litros é mais do que suficiente. É possível fazer bons vinhos com esse conservante, que é necessário, em doses mais baixas”. O engenheiro ao serviço da Deco defende ainda que, à semelhança de outros alimentos, o vinho deveria ter uma lista de ingredientes porque “o consumidor tem direito à informação”, mas não esconde que os produtores têm vindo a usar uma menor concentração de sulfitos.
Ainda antes de entrarmos pelo mundo das aminas biogénicas adentro — resultam da ação de algumas bactérias sobre os aminoácidos –, já o coordenador de dois mestrados em viticutura e enologia do Instituto Superior de Agronomia explicava orgulhosamente que o vinho “é uma bebida alimentar extremamente complexa”. “Num copo de vinho estão milhares de compostos dissolvidos, essa é a beleza da bebida e a mais-valia do sector. Não se trata de uma Coca-Cola ou de um sumo de laranja, não há uma receita única. De um ano para o outro não há dois vinhos iguais”, diz Jorge Ricardo Silva. O académico chama ainda a atenção para o facto de também não existirem duas videiras iguais, cujo ADN é sempre diferente. E relembra que Portugal acolhe 350 variedades de videira — a título de exemplo e de comparação, na Nova Zelândia existem apenas 10.
Voltando aos assuntos complicados, a histamina e a tiramina são outras das suspeitas. “O vinho induz a libertação de histaminas e tiraminas no corpo”, adianta a alergologista Célia Costa, apesar de desconhecer o metabolismo em causa. A histamina é uma molécula presente na resposta do sistema imunitário e promove a dilatação dos vasos sanguíneos. O aumento desta substância no corpo pode provocar erupção cutânea e urticária – uma inflamação da pele com comichão –, mas tal acontece apenas em pessoas sensíveis, isto é, cuja metabolização da histamina seja deficiente. E, dentro desse perfil, considerando uma concentração muito elevada (mais de 100 mg/decilitro).
Tal como os sulfitos, a sensibilidade à histamina está associada a um limiar de tolerância que varia de pessoa para pessoa. É, pois, um problema de sensibilidade individual, diz Nuno Borges, que avança outros detalhes para melhor compreendermos a histamina: “A histamina, e só a histamina, existe no nosso corpo. Quando há uma reação alérgica, como uma picada da abelha, as células libertam histamina como forma de reação ao veneno da abelha, o que dá início ao processo inflamatório. A histamina que temos está muito bem regulada e só pode ser libertada em quantidades muito pequenas. Quando vem da alimentação, não precisamos dela para nada.” Borges esclarece ainda que “quem fica mais sensível aos vinhos, também ficará a outros produtos, como alguns tipos de queijos e conservas”. E se por um lado Célia Costa diz que a tiramina é uma molécula que carece de estudo, Nuno Borges afirma que esta faz “subir a pressão arterial”, embora considere a existência de sensibilidade à tiramina uma realidade bem mais rara.
Caso esteja curioso, Nuno Borges acrescenta que não existe alergia ao álcool. A principal via para o ser humano se ver livre do álcool no sangue é metabolizando-o, transformando-o em algo “neutro” e em “energia” — as outras vias são a urina e a respiração, embora não sejam suficientes para o efeito. Assim, “há pessoas que têm uma capacidade enzimática muito baixa para metabolizar o álcool, pelo que bebem um copo de vinho e ficam completamente atabalhoadas. Não é alergia, é défice metabólico.”
Suspeitos? A culpa fica por apurar
Sulfitos, histaminas e tiraminas. O trio de suspeitos não passa disso mesmo. Porque apesar de existirem determinadas evidências, é difícil apontar um dedo acusador. “O tema em si não é inequivocamente estudado. E há sensibilidades individuais distintas”, diz o nutricionista Nuno Borges. O engenheiro alimentar Nuno Lima Dias acrescenta: “beber vinho não é um risco e o álcool, se consumido moderadamente, pode ter um efeito protetor a nível cardiovascular.” E, sim, há vantagens em beber um copo de vinho por dia.
Fonte: Observador
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